quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um estudo sobre a inveja a partir de um romance de Zuenir Ventura

INVEJA, EMERGENTE INDICADOR DA VONTADE OU EMERGENTE INDICADOR DO DESEJO?




Advertências ao leitor:

A primeira versão desse texto foi publicada em 2000. http://www.appoa.com.br/download/correio83.pdf

Esse texto é um pequeno estudo em forma de resenha crítica para a leitura sistemática e aprofundada do livro de VENTURA, Zuenir. A inveja. São Paulo: Objetiva, 1998. 264 p.





01/25. A Editora Objetiva projetou e realiza a publicação da coleção de livros, Plenos Pecados. São sete livros referentes aos sete pecados capitais, assim denominados desde a Idade Média. A tarefa foi confiada a sete escritores, todos homens: cinco brasileiros, um argentino e um chileno. O estudo romanceado da ira, com José Roberto Torero; o da gula, com Luís Fernando Veríssimo; o da inveja, com Zuenir Ventura; o da luxúria, com João Ubaldo Ribeiro; o da preguiça, com Gilberto Noll; o da soberba, com Tomás Elói Martinez e o da avareza, com Ariel Dorfman.

02/25. Pretendo acompanhar a empreitada da Editora Objetiva e progressivamente resenhar essa literatura de encomenda =[Sonho estacionado, mas não abandonado. 29dez2010]. O primeiro livro disponível, desde 1998, é Mal secreto do escritor Zuenir Ventura que, na abertura, estampa dez epígrafes. Ironicamente, aquela que ele tirou de Provérbios, 14,30: “... a inveja destrói como câncer”, quase que o tira a ele mesmo da redação e finalização do livro. Durante o percurso de seu trabalho, em pleno making of, ele descobre ter contraído câncer, fazendo-o escrever: “afinal, não é por acaso que etimologicamente a palavra câncer vem de caranguejo, que quer dizer o que se esconde – a exemplo da inveja.” (p. 63).

03/25. Mas cabe, desde já, contrapor que se a inveja opera em silêncio não

é porque ela é silenciosa, mas porque ela é processo inconsciente. Uma precisa e aguda análise crítica de Lacan, apoiado na observação de Agostinho de Hipona, permite-me relançar o tema extraordinariamente tratado por Zuenir Ventura.

04/25. Entretanto, antes de apresentar o tema, no contexto da pesquisa psicanalítica ou metapsicológica, convém dar uma idéia da obra de Ventura.

Inveja ou Mal secreto é romance de 268 páginas com 35 capítulos. É basicamente uma pesquisa jornalística sobre a mente, retratando e explicando um grande número de temas inteligentissimamente ordenados, tendo a inveja como moto-perpétuo e a curiosidade de pesquisador como leit-motiv. A curiosidade de Zuenir Ventura é contundente e fascinante. Quando nos damos conta, leitor e autor, estamos adentrados em temas instigantes e, às vezes, nem

paralelos ao do moto-perpétuo ao qual sempre voltamos: a inveja.

05/25. Na lista dos pecados capitais, quase nunca a inveja é posta em primeiro lugar. No projeto da Editora Objetiva, a inveja corresponde ao primeiro livro da coleção.

06/25. O livro de Zuenir é a redação de uma pesquisa em andamento. Se tivera sido uma exposição falada de pesquisa em andamento, seria um seminário, no estilo de Lacan. O Seminário, como Lacan o praticava, é um excurso, gerado por uma preparação intensa de estudos beneditinos sobre o tema, e gerenciado, na exposição, pelo olhar e pela escuta de uma audiência benfazeja cativada e cativante. Não é um impromptu. Lacan sabe muito bem diferençar um seminário de um impromptu.

07/25. O maior valor que encontro no livro de Zuenir, pois, é justamente ser, esse livro, a contrapartida escrita e não oral de uma pesquisa em andamento: é uma redação seminarial. Os trinta e cinco capítulos, se considerarmos a “Advertência aos navegantes”, no início, – é o prefácio – e “Agradecimentos”, no fim, – é a bibliografia de fontes orais e escritas –, são um panelão de inumeráveis ingredientes.

08/25. Entretanto, há três temperos que ordenam a construção da pesquisa

venturana: a) o recurso à direção mágica da cura encontrada junto aos profissionais dos terreiros, ou como diria Lacan, em “Ciência e verdade”, o recurso à causa eficiente; b) o recurso à direção espiritual da cura encontrada junto aos profissionais das igrejas e sinagogas, ou como diria aqui Lacan, o recurso à causa final; c) o recurso à direção psicanalítica da cura encontrada junto aos profissi onais da clínica psicanalítica, ou como diria também Lacan, o recurso à causa material.

09/25. O recurso à direção formal encontrada junto aos profissionais da ciência positiva, ou causa formal, é justamente aquilo que o escritor recusa e combate. Nisso está sua grande originalidade. Há um esforço denodado, no autor, em abandonar a visão da inveja como pecado, especialmente pecado capital e mortal. Por isso, surpreende-se com o leitor ao ver que Dante põe os invejosos no Purgatório ao invés de pô-los no Inferno.

10/25. Entretanto, mesmo tendo ouvido psicanalistas, curiosamente não lacanianos, o autor não consegue ver a inveja a não ser como comportamento e conduta, ou como sentimento e emoção. De fato, Zuenir não teve acesso às

pesquisas psicanalíticas lacanianas.

11/25. Vejamos como Zuenir nos dirige a leitura da pesquisa dele.

12/25. Em mais de um ano de pesquisas e entrevistas sobre a inveja, o autor

ouviu psicanalistas (não-lacanianos!), visitou terreiros de umbanda, conversou com padres e se viu envolvido com um suposto crime de morte. “Esbarrei nas histórias aqui relatadas como nos romances policiais alguém tropeça num corpo. O que veio a ser o livro nem eu mesmo previa. Devo dizer ainda que, como narrador, fui levado pelos acontecimentos sem nada poder fazer, a não ser contar.”

13/25. Aos que pretendem empreender essa viagem, o autor pede que levem consigo, para o caso de se perderem, três distinções básicas: “ciúme é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é não querer que o outro tenha” (p. 10-1). (grifos meus).

14/25. A manifestação da inveja é manifestação corporal e emocional. Isto é, a inveja não é uma experiência indolor, embora secreta e silenciada. Entretanto, a manifestação do processo psíquico não é o processo mesmo, assim como, na genética, o fenótipo que manifesta o genótipo não é o genótipo.

15/25. Então, Zuenir, ao tratar da inveja, consegue evitar o escolho da pecaminosidade, mas não consegue livrar-se do escolho da psicologidade. Isto quer dizer que a pesquisa venturana não é pesquisa psicanalítica. Mas, poderia

vir a ser? Alguém ousaria dizer que é uma pesquisa em psicanálise, como

levianamente se poderia propor?

16/25. A pesquisa psicanalítica explica o processo invejoso inclusive na criancinha antes de falar, isto é, enquanto ela é infante. Fê-lo assim Melanie

Klein. Mas, com mais propriedade, fê-lo Lacan, sem desprezar M. Klein.

17/25. Examinemos as passagens célebres de “Agressividade em psicanálise” (Escritos, p. 114-5): “le moi de l’homme n’est réductible à son identité vécue” (o ‘eu-moi’ do homem não é redutível à sua identidade vivida). (Observem que a tradução brasileira dos Escritos diz: o eu do homem é redutível à sua identidade vivida[!]). Ainda: “Aussi bien les deux moments se confondent-ils où le sujet se nie lui-même et où il charge l’autre, et l’on y découvre cette structure paranoïaque du moi qui trouve son analogue dans les négations fondamentales, mises em valeur par Freud dans les trois délires de jalousie, d’érotomanie et d’interprétation. C’est le délire même de la belle âme misanthrope, rejetant sur le monde le désordre qui fait son être”. (Do mesmo modo, confundem-se os dois momentos em que o sujeito nega a si mesmo e acusa o outro, e neles descobrimos a estrutura paranóica do ‘eu-moi’ que encontra sua analogia nas negações fundamentais valorizadas por Freud nos três delírios, o do ciúme, o da erotomania e o de interpretação. Trata-se, justamente, do delírio da bela alma misantrópica, que rechaça para o mundo a desordem que compõe seu ser.”

18/25. Depois disso Lacan recorda Santo Agostinho, sem o cuidado de referir a fonte com precisão. Trata-se de Confissões, Livro I, Cap. 7, 11. Lá, o professor Agostinho relata ter visto uma criancinha, ainda sem falar, olhando

pálida e com ressentido aspecto para outra criança. Mas, antes também faz uma importante observação que Lacan não indica: “Ita imbecillitas membrorum infantilium innocens est, non animus infantium”. (Assim, o que é inocente [nas criancinhas] é a imbecilidade de seus membros infantis, não o ânimo dessas criancinhas). Para o pesquisador psicanalítico, uma criancinha infante é capaz de inveja como é capaz de desejo.

19/25. A inveja, portanto, é um vagido do desejo que se manifesta até no olhar. Inveja não é manifestação voluntária ou involuntária de nossa vontade. Não é pecado, nem mal secreto, nem comportamento, nem sentimento, nem emoção. Inveja é manifestação de desejo. Mas o que significa esse desejo que prorrompe em formas de pecado, mal secreto, comportamento, sentimento, emoção, se essas formas não são mais do que fumaça e não a combustão?

20/25. O leitor, mesmo lacaniano, hesita perante a manifestação da inveja: responde recriminando-a no outro, ou recusando-a em si mesmo. Mas, a inveja não é mal nem mal necessário, mas é o vagido epifânico do desejo. Se há inveja, então há desejo. O infante (aquele que não tem a fala) inveja. Iisto é, prova que é sujeito de desejo, que já está assujeitado ao desejo. Ser sujeito de vontade não é necessário, é contingente. Mas, ser sujeito de desejo é necessário. Tomar o contigente como necessário é, no mínimo, um qüiproquô cujos efeitos devastadores, nas relações humanas, clamam por socorro.

21/25. Tomar o desejo como vontade é passar da angústia de influência (Harold Bloom) para o gozo de influência e gozo de sugestão, ou gozo da ideologia e do imaginário de que, é verdade, nunca estamos livros. De qualquer forma, dá maior gozo tomar a inveja como mal e pecado, comportamento e sentimento, do que como processo desejante. Nisso, Zuenir Ventura não teve ventura!

22/25. A insocorridade do sujeito acossado pelo desejo indestrutível é, de longe, uma experiência bem mais momentosa do que a insocorridade infantil que papai e mamãe socorrem ou que uma instituição qualquer, religiosa ou não, anula.

23/25. Zuenir Ventura escreve bem, respeita a língua luso-brasileira e o leitor. Sem dúvida o leitor dessa resenha terá prazer de conferir e compartir, com outros leitores, as incontáveis e ricas considerações provocadas e suscitadas pelo escrito de um mestre atual da lusografia brasileira. =[Ledo engano meu! Não sei de ninguém que tenha lido e estudado até o presente o livro de Ventura, da maneira como eu fiz. 29dez2010.] A pesquisa de Ventura serve de texto para aprender a pesquisar, aprender a escrever, aprender a compartir, aprender a conviver.

24/25. Ventura remete-se e remete-nos, diversas vezes, ao romance, Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Traz, especialmente, no capítulo “Cólera que espuma”, o soneto de Raimundo Correia, Mal secreto. Mas, certamente, mais ilustrativo, para um lacaniano (estádio do espelho) e um kleiniano (identificação projetiva) é um pequeno grande poema de Carlos Drummond de Andrade, Rejeição, que Zuenir não tem a ventura de propor. =[Igualmente, agora, temos também o romance de Milton Hatoun, “Dois irmãos”.

25/25. Apresento, para colação por parte do leitor, os dois poemas, a fim de justificar o título dessa resenha minha resenha, e a fim de reafirmar que, na pesquisa psicanalítica, a inveja é processo inconsciente, onipresente como é o desejo, inquebrantável e indestrutível do qual somos sujeitos. De fato, se há inveja, então há desejo.



MAL SECRETO - Se a cólera que espuma, a dor que mora / na alma e destrói cada ilusão que nasce; / tudo o que punge, tudo o que devora / O coração, no rosto se estampasse; // Se se pudesse o espírito que chora / Ver através da máscara da face, / Quanta gente talvez que inveja agora / Nos causa, então piedade nos causasse. // Quanta gente que ri, talvez, consigo, / Guarda um atroz, recôndito inimigo, / Como invisível chaga cancerosa! // Quanta gente que ri, talvez existe, / Cuja ventura única consiste / Em parecer aos outros venturosa!



REJEIÇÃO - Não sei o que tem meu primo / que não me olha de frente. / Se passo por sua porta, / é como se não me visse: / parece que está na Espanha / e eu, velhamente, em Minas. / Até me virando a cara, / a cara é de zombaria. / Se ele pensa que é mais forte / e que pode me bater, / diga logo, vamos ver / que a tapa se resolve. / A gente briga no beco, / longe dos pais e dos tios, / mas briga de decidir / essa implicância calada. / Qual dos dois, mais importante: / ramo dele, o meu ramo? /Pai mais rico, quem tem? / Qual o mais inteligente, / eu ou ele, lá na escola? / Namorada mais jeitosa, / á e minha ou é a dele? / Tudo isso liquidaremos / a pescoção, calçapé, um dia desses, na certa. / Sem motivo, sem aviso, / meu primo declara guerra, /essa guerrinha escondida, / de mim, mais ninguém, sabida. / Pode pois uma família ser assim tão complicada / que nós dois nos detestamos / por sermos do mesmo sangue? / Nossas paredes internas / são forradas de aversão? / Será que o que eu penso dele / ele é que pensa de mim / e me olha atravessado / porque vê na minha cara o vinco de zombaria / e um sentimento de força, / vontade de bater nele? / Meu Deus, serei o meu primo, / e a mesma coisa sentimos / como se a sentisse o outro?/



Finalmente, o texto exuberante de Zuenir Ventura não pode não nos

fazer lembrar um pensamento de Goethe: “Perante a excelência do outro, não há remédio senão o amor” =[ou a inveja].

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