quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012



Análise à la Rochefoucauld;
literatura de divã e literatura de poltrona; o divã e a rede

Por jlcaon@terra.com.br 120208060408
Para Fany e Calos Fernando Karnas






Houve um tempo em que escritores como La Rochefoucauld faziam análises finas dos estilos de vida dos cidadãos. Essa capacidade sagaz de extrair e desnudar “las buenas y malas intenciones” dissimuladas nas condutas dos humanos são frequentemente atribuídas, injustamente, ao psicanalista. O psicanalista não é um observador fino ou refinado, pois o ofício dele é escutar as formações do inconsciente, de modo especial nas falas espontâneas do psicanalisante, e isso, em cima do lance e presencialmente.

É divertida e instrutiva a leitura desse material que muitos referem como análise dos caracteres ou dos tipos humanos. Essa literatura sobrevive atualmente de forma bem percuciente nas produções pícaras dos humoristas, cartunistas, comediantes, etc..

Os psicólogos tornaram essa modalidade de análise em estudos que denominam teoria da personalidade, caracterologia, enfim, coisa do tipo austríaco-americano de psicologia e análise do ego (ego da concepção austríaco-americana). É grande o número de teorias da personalidade ou do caráter na história da psicologia brasileira. É a partir delas que se formam os gabaritos dos exames psicológicos. Quem não conhece as exaustivas análises de caráter realizadas por Wilhelm Reich (Análise do caráter), dos tipos realizadas por Jung (Tipos psicológicos), de Dante Moreira Leite (O caráter nacional brasileiro)?

Uma análise do ver e do olhar sempre desperta interesse. É o que vou fazer, após dizer, en passant, o que poderia ser um intercâmbio de e-mails 1) sobre a literatura de divã e a literatura de poltrona; 2) sobre o divã e a rede.



.01: Literatura de psicanalisante ou literatura de divã.

Repasso aqui um texto recente publicado em e-mail que considero literatura de divã.

“Um frêmito arrepio percorreu o corpo cansado do viajante. Durante anos, dias, horas, se mantivera fiel ao ritual de idas e vindas, ao local que fora destinado ao santo "divã".

Agora tudo era silêncio. Um clarão lhe ofusca os olhos, o vazio penetrante doi, uma leve tontura deixa-o meio cambaleante. O primeiro instante é de confusão, logo percebe que nada mais era.

Sacro santo divã, onde tudo era possível, menos olhar para trás, pois corria o risco de virar estátua como a mulher de Ló, desobedecendo aos mandatos de Deus.

Não poder mais falar, esse era o medo que lhe assombrava as noites. Porem ele sabia que o seu desejo estava seguro enquanto se detinha a vasculhar a sua alma inquieta. Sabia que não era o único a usar aquele lugar, pois os fantasmas continuavam a insistir, gritar e sussurrar suas queixas e lamentos, enquanto buscava extrair palavras de suas entranhas, dos labirintos de sua mente.

Necessitava de coragem para entrar, naquele recinto, onde sua alma se desvelava, onde o mundo parava para que ele acertasse o passo.

Havia todo um ritual antes que tivesse assegurado que o prazer de estar a sós consigo mesmo. Por segundos detinha-se olhando o divã com curiosidade de criança que quer fazer arte, tentando adivinhar pelas dobras do tecido, o outro que deixara os seu calor as suas marcas, os desmanches, a violência, o ardor, de ter ousado ir a fundo.

Assim uma parte sua e do outro se comungavam no calor que ainda emanava, podendo assim dar início ao ritual, sempre o mesmo, nunca o mesmo, pois somente conseguia falar no futuro do pretérito.

Há eu: "eu falaria, eu passaria, eu voltaria.”

Não volta, sai com pressa, tropeça em objetos estranhos, que não pode reconhecer mais como seus.

Tenta sair, não consegue, retorna.

Eis que "familiarmente", pensa ter encontrado o seu objeto perdido.

A mesma ilusão!

A vida continuaria... Abraços. Fany.”



A literatura de psicanalisante, como também se chama essa literatura que aqui chamo de literatura de divã, vem se impondo desde os tempos de Freud, se nós levarmos em consideração o escrito de “O homem dos lobos”. É curioso comparar como o psicanalisante fala da sua própria psicanálise (literatura de divã), e como Freud fala da psicanálise desse psicanalisante (literatura de poltrona). Quem tem ainda curiosidade pode comparar o resultado dessa comparação entre psicanalisante e psicanalista com o escrito de uma jornalista que também entrevistou à moda de repórter o psicanalisante mais célebre da história da clínica psicanálise. O curiso pode ler com proveito meu estudo “Retrato, auto-retrato e construção metapsicológica de Serguéi Constantinovitch Pankejeff, o “Homem dos lobos”, que aparece em http://www.editoraescuta.com.br/pulsional/140_141_03.pdf

E se quiser aprofundar o que vem a ser essa literatura de psicanalisante ou literatura de divã, vale ir à HomePage de Luiz-Olyntho Telles da Silva onde se encontra um texto meus “Literatura e biblioteca de psicanalisante” a saber, em http://www.tellesdasilva.com/fccaonmemoriasdepsicanalisante.pdf



.02: O divã e a rede.

Assim como há muitos anos me vejo surpreendido entre Estafermo e Pascácia que se fazem ver e se fazem olhar nos muitos dos seus semblantes que encontro, me parece que Biruta e Semplice também fazem ou já fizeram aparecências a meu amigo Carlos Fernando Karnas. O nome “Biruta” e “Semplice” serve para indicar um e outro sexo. É o caso dos substantivos que a gramática chama de comum de dois.

Diferentemente da Gramática que chega a admitir até cinco gêneros, bem antes das campanhas e cruzadas das pesquisas sobre identidade de gênero, a psicanálise prende-se a um simples axioma: “As palavras têm gênero; as pessoas têm sexo!” Mas, assim como, para comparar a literatura de divã e a literatura de poltrona, eu trouxe um texto, agora trago outro para comparar o divã e a rede. O texto é de Carlos Fernando Karnas, também recentemente publicado por e-mail:

“... as cenas animadas do link são maravilhosas. Têm tudo, até biruta, e o mais gostoso: sacanagens. Símplice me mandou pensar um pouco diferente. Sugeriu-me a rede, bem brasileira, bem trançada para aguentar o meu peso. Elas aguentam até dois ou mais pesos de gêneros diferentes. Na sua insinuação, rede equivaleria ao divã? Poderia substituir o divã? Se divã pode ficar à deriva, rede não. Rede fica amarrada em paredes ou esteios, para sustentar o peso do sujeito que nela deita, e se balança. Nos rios amazônicos, rede é indispensável. Por conta própria jamais ficará à deriva, a não ser que os barcos que navegam com suas redes a bordo fiquem à deriva. Então, o indivíduo na rede tem muitos anteparos. No divã os anteparos são menores e o divã não é tão confortável quanto a rede. Falando nisso, aqui no meu escritório tem uma rede, nela vou me deitar agora. Acredito que Símplice, Estafermo e Pascácia têm lá seus estranhamentos e seus próprios conceitos. Vou dar um fora no Símplice e eleger o Biruta para papear. Macho ou fêmea sempre será Biruta. Carlos Fernando.”

.03. Uma análise perfunctória do ver e do olhar.

Sempre procurei diferençar entre “ver” e “olhar” por meio de um simples experimento. Se, de noite, estou numa sala mostrando um cartaz aos presentes, eles veem, no cartaz, as figuras, as letras, etc., No caso de cair a luz elétrica, o escuro impede que os participantes continuem vendo. Então todos tentam olhar. Quer dizer que até no escuro ou olhos fechados a gente olha, mesmo sem nada ver. Todavia, no sonho durante o sono, quando vemos, a gente não produz o ver por meio do olhar?

Karl Popper, em sua “Autobiografia intelectual”, se refere a Bach que à medida que compunha durante a semana, exibia o resultado de sua composição no domingo. O que fazia Bach não se perder na vaidade da exibição e ficar devotado à sua arte? - pergunta-se Popper. E Popper responde que Bach compunha não para fazer ver (ouvir) música ou para se fazer ver, mas para a maior glória de Deus. Eu digo, ars gratia artis (musica gratia musicae) é causa do desejo de Bach.

De fato, se compararmos “ver” e “olhar”, à moda de La Rochefoucald, podemos diferençar quatro situações:

.01: Fazer ver o que estamos fazendo.

.02. Fazer-se ver enquanto mostramos o que estamos fazendo.

.03. Fazer olhar o que estamos fazendo.

.04. Fazer-se olhar enquanto mostramos o que estamos fazendo.

Vanitas vanitatum et omnia vanitas, não é de hoje. Assim, como não podemos não cultivar o dinheiro – que quando faz falta é o pior dos tiranos – assim também não podemos não cultivar a vaidade – que mais nos escraviza quando menos somos vistos ou olhados.

Todavia, por que será que ainda quando o dinheiro não faz falta, muitos continuamos cada vez mais escravos ou piamente devotos dele, por exigência, prestígio e suposta sanidade? Por que será que ainda quando se tem o acolhimento pelo ver e pelo olhar do/s outro/s, ainda pagamos caro os exercícios devotos para ser cada vez mais visto e olhado, por exigência, prestígio e suposta sanidade?

São questões de análise e não de psicanálise, de rede e não de divã, de literatura de consciência crítica amparada ou não na literatura de poltrona ou de divã.

Mas, falta de dinheiro encrenca e falta de ser visto e ser olhado também encrenca. Mas, por que é que se fica encrencado justamente quando se tem suficiente dinheiro e suficiente visão e olhar por parte dos outros?

O que é desejo mortífero que hipotecado ao capital e à vaidade nos lança num círculo infernal de demandas? Mas, desejo existia antes do capitalismo, pois desejo é coisa de habitar a linguagem. Que sistema é esse que hipoteca até o que temos de mais caro: a alma e o desejo que a anima?

2 comentários:

  1. P'er'aí, temos que dar tempo para alguém aumentar o volume do seu aparelhinho de som, aquele para deficiente auditivo. Displicente ele saiu para caminhar na mata atlântica pensando em coisas simples e não na simplicidade das coisas. Mal percebeu o tsunami que estava atrás, mesmo com todo e portentoso barulho que faz, pois, na mata domesticada acostumara-se aos ruídos fugazes que se mantêm pela intermitência. Ele sabe há séculos que, dentro da mata, e sem precisar falar de modo perfunctório, é a escuta a que faz mais sentido. Ela exige esmero. Assim como o olhar. Levou essas naturais intempéries na brandura, sem necessidade de estresses. Afinal, há coisa melhor do que deitar numa rede à sombra e ao vento refrescante no meio da mata atlântica? Na verdade há: um quarto fechado com ar refrigerado, som ambiental e um tecnológico colchão da NASA para se deitar. Entre um ambiente e outro, nas suas similaridades, se houver e se se perceber, no quarto é possível nunca entrar mosquito e o cara estar a salvo da dengue. Assim, poderá continuar, na sua zona de conforto, alimentar sua necessidade de estima e de admiração. Enfim. Antes que o tsunami arrase tudo, o cândido idealiza suas inconsequentes alegorias, nas máximas e epigramas, já que ninguém, mas ninguém mesmo escapa das suas falsas virtudes.

    Carlos Fernando

    ResponderExcluir
  2. Quantas riquezas extraídas heim Professor!
    Desistir jamais e jorram naturalmente a água da fonte.
    Nascentes férteis no solo coberto por folhas secas.
    O arquiteto nem chegou aqui.
    As obras fluem.
    Que legado acimentado!
    Parabéns!
    Abraços. Cenira

    ResponderExcluir