quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Uma leitura de uma tese de René Girard

Leitura sacrificial e leitura não-sacrificial do religioso.


Uma apropriação de uma tese de René Girard.



Por jlcaon@terra.com.br



Vamos pensar numa comunidade primitiva que ficou conflitada. Uma crise ameaça pôr a comunidade toda em pé de guerra, onde cada um fica contra cada um e cada um contra todos.

Uma solução simples leva a todos se entreguerrearem. Disso, resultaria a extinção da comunidade inteira enquanto comunidade.

Outra solução, menos simples, leva a todos a se porem em guerra com um: o bode expiatório. O bode expiatório é a vítima a ser sacrificada, isto é, assassinada, linchada, imolada. Essa vítima antes sacrificável, depois de sacrificada, torna-se sagrada. A violência indefinida de todos da comunidade organiza-se na direção de um. Após o sacrifício ou imolação a vítima sacrificada torna-se sagrada e a comunidade volta a gozar de relativa paz e estabilidade.

A vítima sacrificada é consumida por todos os participantes da comunidade não apenas como alimento material, mas também como alimento espiritual. Isto se realiza através de atividades e comportamentos rituais coletivos.

O assassinato ou linchamento da vítima não é considerado assassinato ou linchamento puro e simples, mas como sacrifício ou imolação capaz de recompor a paz e estabilidade ameaçadas dentro da comunidade. O monstro agora pacificado – monstro que não é nenhum deus – é a própria comunidade que, desequilibrada, tornou-se monstro contra si própria.

A vítima sacrificável pode ser humana ou animal. Sendo humana, ou pode ser da própria comunidade, ou buscada fora da comunidade, em forma de prisioneiro, como é o caso do canibalismo dos tupinambás no Brasil. Sendo animal, a vítima escolhida pode ser um animal do rebanho da comunidade ou um animal obtido por meio de caça.

Algumas religiões politeístas afro-brasileiras ou monoteístas, judaica e islâmica, ainda hoje realizam rituais sacrificiais cruentos de animais.

O monoteísmo cristão realiza, na missa, um ritual sacrificial incruento. Isto significa que as cristandades consideram a missa um ritual sacrificial incruento. Essa é a leitura sacrificial do suplício que matou Jesus. Mais. A leitura sacrificial considera o assassinato ou linchamento de Jesus não como um assassinato ou linchamento, mas como um sacrifício, uma imolação. Mais ainda. Esse sacrifício ou imolação é auto-sacrifício, é auto-imolação. É como se Jesus, a exemplo de muitos profetas, que repudiavam todas essas intermináveis barbaridades exigidas por uma divindade, tivesse se submetido, por livre e espontânea vontade à imolação, para acalmar de uma vez por todas a divindade irada desde o primeiro pecado de Adão e Eva. É assim que entende uma leitura sacrificial os sacrifícios e as imolações de seres humanos ou de animais.

A missa cristã dos católicos e dos não-católicos é considerada, pela leitura sacrificial, como a celebração ou a renovação do suplício ou sacrifício (auto-sacrifício) da cruza, evidentemente, sob fora incruenta, isto é, sem derramamento de sangue.

Ainda há sacrifício, ainda jorra sangue, mas de forma incruenta.

Ainda a comunidade sacrificadora tem oficiante, o sacerdote que, como os antigos sacerdotes, imola a vítima, a reparte como alimento, não mais como alimento material recém-sacrificado, mas como alimento eminentemente espiritual. O pão não é mais pão, o vinho não é mais vinho, mas verdadeiramente o corpo e o sangue de Jesus. Dito com outras palavras: a carne da vítima imolada não é mais carne de vítima imolada, agora é pão sagrado; o sangue da vitima não é mais sangue de vítima imolada, agora é vinho sagrado.

A leitura sacrificial da missa cristã, por católicos ou não-católicos, inclua ou não o pão (na verdade, algumas migalhas incapazes de garantir uma refeição), inclua ou não o vinho (na verdade, algumas gotas incapazes de constituir um gole de vinho), continua a considerar a missa como sacrifício, imolação, auto-sacrifício e auto-imolação. Nesse sentido, a leitura sacrificial da missa cristão, feita por católicos e não-católicos, não é diferente da leitura sacrificial dos monoteísmos sacrificiais judeu e muçulmano. O monoteísmo cristão de leitura sacrifical estaria escamoteando aquilo que, patentemente, se pratica nos monoteísmos judeu e muçulmano? E os monoteísmos cristãos que não adotam a comungação do pão e do vinho sagrados não estariam adotando ainda mais dissimuladamente o assassinato, o linchamento, de Jesus como imolação e auto-imolação, como sacrifício e auto-sacrifício?

A leitura não-sacrificial iniciada pelos profetas professada por Jesus não põe em Deus nenhum desejo de imolações ou de auto-imolações de vítimas. Os profetas, inicialmente, e Jesus, definitivamente, aboliram e ab-rogaram a concepção da leitura sacrificial das religiões, isto é, retiraram a imolação e auto-imolação de vítimas, na relação da comunidade com Deus; na relação de cada ser humano com outro ser humano; na relação cada ser humano com a comunidade; na relação de cada ser humano com Deus; na relação de cada comunidade com cada um dos seus participantes e com uma das outras comunidades.

Sem a concepção da leitura sacrificial que supõe imolações e auto-imolações, resta somente uma possibilidade: a amizade. É a amizade que ultrapassa qualquer espírito de parentesco e qualquer espírito de etnia.

Num mundo de amizades, na há vítimas, portanto, não há sacrifícios, imolações, auto-sacrifícios ou auto-imolações. Não há oficiantes nem oficiados: há amigos.

Jesus não se concebe como vítima. Não concebe o assassinato ou linchamento contra ele uma imolação ou auto-imolação, um sacrifício ou auto-sacrifício, como o fez Caifás perante a turba perTURBAda e conTURBAda: “... convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça a nação toda” Jo 11:50. Foi realmente um ato sacrificial praticado por quase toda uma comunidade, oficiada por judeus (Caifás, Herodes) e romanos (Pilatos), comunidade conturbada que levou de roldão, em sua perturbação, a Judas, Pedro e todos os amigos, simpatizantes, discípulos e apóstolos, excetuadas algumas mulheres e o jovem João que depois se tornaria o quarto evangelista oficial da Igreja.

De fato, Jesus não concebe o assassinato e linchamento como imolação ou auto-imolação impostos pelos oficiantes judeus (Caifás, que o fez passar como bode expiatório) ou romanos (Pilatos, que o considerava um sedicioso como era Barrabás). Ele os considerava como aqueles “que não sabem o que fazem”, desde o início dos tempos, que consideram uma turba conturbada ou perturbada como um deus faminto e sedento de carne e sangue de vítimas humanas ou animais.

As pesquisas dos etnólogos, especialmente René Girard, resgatam, via leitura não-sacrificial, os textos dos Evangelhos – uma grande parte dos Evangelhos descrevem minuciosamente o assassinato e linchamento de Jesus, não como se Jesus fosse uma vítima ou vítima voluntária, mas como mais um dos muitos atos que Jesus praticava justamente contra essa concepção sacrificial do religioso que existe desde o aparecimento da humanidade.

Jesus, seguindo a linha dos profetas que combatiam a concepção da leitura sacrificial, revela e proclama que Deus é amigo, que Deus se oferece como Amigo e não como juiz implacável, aplicador de prêmios ou castigos, ou monstro faminto e sedento de carne e sangue de vítimas humanas ou animais.

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