segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Uma leitura de uma tese de René Girard

Uma leitura de uma tese de René Girard

Leitura sacrificial e leitura não-sacrificial do religioso.

Uma apropriação de uma tese de René Girard.

Por jlcaon@terra.com.br

Vamos pensar numa comunidade primitiva que ficou conflitada. Uma crise ameaça pôr a comunidade toda em pé de guerra, onde cada um fica contra cada um e cada um contra todos.

Uma solução simples leva a todos se entreguerrearem. Disso, resultaria a extinção da comunidade inteira enquanto comunidade.

Outra solução, menos simples, leva a todos a se porem em guerra com um somente: o bode expiatório. O bode expiatório é a vítima a ser sacrificada, isto é, linchada, imolada. Essa vítima que antes é considerada vítima sacrificável, depois de sacrificada, vai ser considerada como sendo vítima sagrada ou vítima consagrada.

Por meio desse processo de vitimização, a violência indefinida de todos da comunidade organiza-se na direção de um só: o bodo expiatório. Após o sacrifício, linchamento, ou imolação a vítima sacrificada torna-se sagrada e a comunidade volta a gozar de relativa paz e estabilidade.

A vítima sacrificada nas comunidades primitivas é consumida por todos os participantes da comunidade. Ela serve não apenas como alimento material, mas também como alimento espiritual ou psicossocial. Isto se realiza através de atividades e comportamentos rituais coletivos, como festas e rituais de todo o tipo.

O linchamento da vítima não é considerado assassinato ou crime. É linchamento puro e simples, um sacrifício ou imolação capaz de recompor a paz e estabilidade ameaçadas dentro da comunidade.

A comunidade que de uma hora para outra se torna monstro perigoso, monstro que não é nenhum deus, agora vai ficar pacificado. Isto é, é a própria comunidade que, desequilibrada, que se torno monstro contra si própria e ele mesma precisa encontrar meios para se pacificar. O sacrifício ou linchamento cruento de uma vítima é um desses meios.

A vítima sacrificável pode ser humana ou animal.

Sendo humana, ou pode ser da própria comunidade, ou buscada fora da comunidade, em forma de prisioneiro, como é o caso do canibalismo dos tupinambás no Brasil. Sendo animal, a vítima escolhida pode ser um animal do rebanho da comunidade ou um animal obtido por meio de caça.

Algumas religiões politeístas afro-brasileiras ou monoteístas, judaica e islâmica, ainda hoje realizam rituais sacrificiais cruentos de animais.

O monoteísmo cristão realiza, na missa, um ritual sacrificial incruento. Isto significa que as cristandades consideram a missa um ritual sacrificial incruento. Essa é a leitura sacrificial do suplício que matou Jesus.

Mais. A leitura sacrificial considera o linchamento de Jesus não como um linchamento, mas como um sacrifício, uma imolação.

Mais ainda. Para a leitura sacrificial, esse sacrifício ou imolação de Jesus é auto-sacrifício, é auto-imolação.

Todavia, Jesus, a exemplo de muitos profetas, que repudiavam todas essas intermináveis barbaridades exigidas por uma divindade truculenta, tivesse se submetido, por livre e espontânea vontade à imolação, para acalmar de uma vez por todas a divindade irada desde o primeiro pecado de Adão e Eva. É assim que entende a leitura sacrificial os sacrifícios e as imolações de seres humanos ou de animais.

A missa cristã dos católicos e dos não-católicos é considerada, pela leitura sacrificial, como a celebração ou a renovação do suplício ou sacrifício (auto-sacrifício) da cruz, evidentemente, sob fora incruenta, isto é, sem derramamento de sangue.

Todavia ainda há sacrifício, ainda jorra sangue, mas de forma incruenta.

Ainda a comunidade sacrificadora tem oficiantes, os sacerdotes que, como os antigos sacerdotes, imolam a vítima que se torna sagrada e consagrada, repartida como alimento, não mais como alimento material recém-sacrificado, mas como alimento eminentemente espiritual. E assim, o pão não é mais pão, o vinho não é mais vinho, mas verdadeiramente o corpo e o sangue de Jesus.

Dito com outras palavras: a carne da vítima imolada não é mais carne de vítima imolada, agora é pão sagrado e consagrado; o sangue da vitima não é mais sangue de vítima imolada, agora é vinho sagrado e consagrado.

A leitura sacrificial da missa cristã, por católicos ou não-católicos, inclua ou não o pão (na verdade, esse pão não passa de algumas migalhas incapazes de garantir uma refeição), inclua ou não o vinho (na verdade esse vinho não passa de algumas gotas incapazes de constituir um gole de vinho), continua a considerar a missa como sacrifício e imolação, como auto-sacrifício e auto-imolação.

Nesse sentido, a leitura sacrificial da missa cristã, feita por católicos e não-católicos, é diferente da leitura sacrificial dos monoteísmos sacrificiais judeu e muçulmano. Mas, o monoteísmo cristão de leitura sacrifical estaria escamoteando aquilo que, patentemente, se pratica nos monoteísmos judeu e muçulmano? E os monoteísmos cristãos que não adotam a comungação do pão e do vinho sagrados não estariam adotando ainda mais dissimuladamente o linchamento, de Jesus como imolação e auto-imolação, como sacrifício e auto-sacrifício?

A leitura não-sacrificial iniciada pelos profetas e professada por Jesus não põe em Deus nenhum desejo de imolações ou de auto-imolações de vítimas. Os profetas, inicialmente, e Jesus, definitivamente, aboliram e ab-rogaram a concepção da leitura sacrificial das religiões, isto é, retiraram a imolação e auto-imolação de vítimas, na relação da comunidade com Deus, tanto na relação de cada ser humano com outro ser humano, como na relação cada ser humano com a comunidade; tanto na relação de cada ser humano com Deus, como na relação de cada comunidade com cada um dos seus participantes e com uma das outras comunidades.

Sem a concepção da leitura sacrificial que supõe imolações e auto-imolações, resta somente uma possibilidade: a amizade. É a amizade esse espírito que ab-roga e ultrapassa qualquer espírito de parentesco e qualquer espírito de etnia, qualquer espírito de casta ou corporação.

Num mundo de amizades, não há vítimas, portanto, não há sacrifícios, imolações, auto-sacrifícios ou auto-imolações. Não há oficiantes nem oficiados: há amigos.

Jesus não se concebe como vítima. Não concebe o linchamento contra ele uma imolação ou auto-imolação, um sacrifício ou auto-sacrifício, como o fez Caifás perante a turba perTURBAda e conTURBAda: “... convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça a nação toda” Jo 11:50.

Foi realmente um ato sacrificial praticado por quase toda uma comunidade, oficiada por judeus (Caifás, Herodes) e romanos (Pilatos), que uma comunidade conturbada levou de roldão, em sua perturbação, a Judas, a Pedro e a todos os amigos, simpatizantes, discípulos e apóstolos, excetuadas algumas mulheres e o jovem João que depois se tornaria o quarto evangelista oficial do cristianismo, especialmente católico.

De fato, Jesus não concebe o linchamento como imolação ou auto-imolação impostos pelos oficiantes judeus (Caifás, que fez Jesus passar como bode expiatório) ou romanos (Pilatos, que fez Jesus passar como sedicioso igual a Barrabás).

Jesus os considerava como aqueles “que não sabem o que fazem”, desde o início dos tempos, que consideram uma turba conTURBAda ou perTURBAbada como um deus faminto e sedento de carne e sangue de vítimas humanas ou animais.

As pesquisas dos etnólogos, especialmente René Girard, resgatam, via leitura não-sacrificial, os textos dos Evangelhos – uma grande parte dos Evangelhos descrevem minuciosamente o linchamento de Jesus, não como se Jesus fosse uma vítima ou vítima voluntária, mas como mais um dos muitos atos que Jesus praticava justamente contra essa concepção sacrificial do religioso que existe desde o aparecimento da humanidade.

Jesus, seguindo a linha dos profetas que combatiam a concepção da leitura sacrificial, revela e proclama que Deus é amigo, que Deus se oferece como Amigo e não como juiz implacável, aplicador de prêmios ou castigos, ou monstro faminto e sedento de carne e sangue de vítimas humanas ou animais.

Jesus revela definitivamente que a vitimação e os sacrifícios de pessoas e de animais é um embuste das próprias comunidades. Enfrentou como os profetas enfrentaram o espírito sádico e cruel das leituras sacrificiais que ainda hoje sobrevive em inumeráveis ritos cruentos e incruentos.

Relê o texto e pergunta-te até que ponto ainda inscientemente continuas sendo um adepto da leitura sacrificial.

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