quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Deslindando uma identidade de Pascácia que Estafermo não conhece
e uma identidade de Estafermo desconhecida por Pascácia

Por jlcaon@terra.com.br

Em seu livro, “A presença do mito” (1972), Kolakowski reconhece a invalidez dos mitos hierocráticos, próprios dos ordenamentos autoritários da vida social, os quais se apresentam como princípio religioso. Ele também adverte contra os mitos pervertidos que se apresentam como superação do conhecimento em forma de construções pervertidas do mito.
Kolakowski não emprega o mito contra a razão. Pelo contrário, reconhece uma razão no mito: a razão que combate o mito da razão, como a querem ver Comte e os positivistas em geral.
Penso que assim como o sofisma e a falácia são construções pervertidas do silogismo, assim também a transformação do mito em mito hierocrático ou mito pervertido são construções distorcidas do mito.
Enquanto sujeitos em situação “ENTRE”, somos determinados, por um lado, pela vertente mitológico-metafísica e, por outro, pela vertente tecnológico-científica da cultura e da civilização. O mito está presente, insinua-se e destila-se nos campos não-míticos da experiência e do pensamento. Assim sendo, como há a possibilidade do mito da razão, há também a possibilidade do mito da ciência.
Quanto ao método, sugiro que tentemos nos pôr de acordo com dois tipos de entendimento: um entendimento analítico e um entendimento sintético. Pelo primeiro, a ciência é explicativa. Pelo segundo, a crença é compreensiva.
Por exemplo, quanto pesa cada uma das duas melancias mais um saco de farinha de quatro quilos que estão num prato da balança, se no outro prato, em equilibro com o primeiro, se encontram dois pesos de 10 kg cada um? O entendimento dessa questão é analítico-explicativo.
O juiz solicita aos cônjuges em litígio de separação que dividam justamente os bens seguindo o seguinte procedimento: um reparte os bens em dois montes. O outro cônjuge é o primeiro a escolher um dos montes. O entendimento dessa questão é sintético-compreensivo.
Então, podemos concordar que a metafísica, enquanto teoria do conhecimento, é prolongamento da vertente mitológica da cultura e da civilização e que a ciência, enquanto teoria do conhecimento, é prolongamento da vertente tecnológica da cultura e da civilização. Uma e outra, a atividade mítico-metafísica e a atividade técnica-científica, situam-se enquanto realidade condicionada orientada por uma realidade incondicionada (o Real).
Diante de uma ordem finalista (causalidade final), ou aceitamos a transcendência (no sentido kantiano da finitude) ou o niilismo.
Todo mito degenera ao se tornar doutrina, pois que, se torna uma construção que, necessitando de prova, a busca no rito cada vez mais repetido. Assim, crença ou fé degeneradas imita caricaturalmente a ciência.
O mito, bem como a metafísica, sonham ou alimentam a crença em valores humanos perpétuos. Isso não passa mais do que afirmação do humano que se prolonga na crença de um mundo humano construído por humanos em diferentes épocas.
A consciência mítica ou consciência metafísica é afirmação ou crença em valores. A própria ordem lógico-matemática é valor explicativo e a crença é valor compreensivo. Mesmo assim, a ciência é analítico-explicativa e a crença é sintético-compreensiva.

Leitura complementar de texto de Kolakowski:

Por isso a oposição entre crença compreensiva e ciência explicativa possui um sentido algo diferente do que lhe é dado comumente pelos positivistas. A crença, assim como a ciência, possui fundamentos próprios nos valores da cultura; nem uma nem a outra têm suas raízes em normas transcendentais de conhecimento, porque tais nor¬mas, se é que existem, não podem ser conhecidas.

Os valores que promovem uma e ou¬tra são diferentes. É necessário averiguar em que sentido seu conflito é meramente ocasional, ou seja, está determinado pela civilização, e em que sentido é inarredável.

Certamente, a forma lógica do conflito pode ser evitada na medida em que não se tente fixar os valores do mito como tecnológicos, ou seja, como cientificamente válidos.

Paralelamente, a confusão entre as funções mítica, ritual e tecnológica dos distintos componentes da vida social cresceu extraordinariamente. Certas atividades e produ¬tos da cultura desempenham efetivamente uma função dupla ou tripla, mesmo quan¬do derivados de uma vertente comum, como os diversos ramos da arte. Isso promove equívocos na interpretação, mas não chega a impedir que se estabeleça a distinção.

Nas sociedades primitivas as atividades técnicas estavam integradas na ordem ritual e mítica, a tal ponto que tinham seu aspecto sacro e transcorriam dentro de um ordena¬mento mais amplo, que lhes dava sentido; não obstante, a eficácia da ordem ritual se distinguia com total clareza da eficácia da ordem técnica (fato assinalado por Malinowski).

A cultura orientada tecnologicamente empreendeu um esforço inverso: quis incluir o mito na ordem tecnológica e convertê-lo em um componente do conhecimen¬to no mesmo sentido em que a ciência o é. Começou, então, a buscar uma justificativa para o mito. Esses ensaios caricaturais de racionalização criaram caricaturas de mitos, particularmente abundantes na religião cristã. Hoje fazem-se tentativas de reparar essas manifestações de decadência que, durante muito tempo, foram julgadas como demonstrações de vigor. São tentativas de restituir ao mito sua dignidade original. Mas, seu êxito é duvidoso. (Leszek Kolakowski, “A presença do mito” (1972), p. 13-14.

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