sábado, 11 de fevereiro de 2012

Uma história de um eMARanhado de histórias

Quem é o pai de Sahrazad e de Dinarzad?

Um guia de leitura do e-MAR-ahado de histórias de Sahrazad

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LIVRO DAS MIL E UMA NOITES (2005). Volume I, II e III. – Traduzido do árabe por Mamede Mustafá Jarouche. Editora Globo.



A dinastia sassânida é marcada pelas datas 226-641 d. C. Um rei Sahriyar (rei da cidade) tem um irmão menor, Sahzaman (rei do tempo). O primeiro reina sobre a Índia e a Indochina e o segundo, recebe do primeiro, a região de Samarcanda.

Após dez anos de separação, Sahriyar manda seu vizir (ministro), pai de Sahrazad (a de nobre estirpe) e de Dinarzad (moeda) ou Dinazad (a de nobre fé), buscar Sahzaman. O vizir, após de ser dignamente recebido por Sahzaman, prepara-se para o retorno. Sahzaman quer despedir-se outra vez da rainha e, ao voltar, surpreende-a deitada com um negro escravo. Assassina os amantes, transpassando-os com um único golpe de espada. Mas, nada conta ao vizir (ministro) e com ele parte para encontrar-se com o irmão Sahriyar.

Sahzaman é hospedado no palácio régio destinado aos hóspedes que fica separado do palácio residencial por um jardim. Sahzaman acompanhava o irmão durante o dia e de noite recolhia-se para os aposentos destinados aos hóspedes. Todavia, a amargura em que vivia não diminuía. Sahriyar, crendo que a pior do irmão era o fato de estar afastado da esposa e do reino, convida a se distrair numa caçada. Sahzaman declina do convite.

Mesmo assim, Sahriyar parte para a caçada. Sozinho, Sahzaman fica olhando o jardim pela janela entreaberta. Em dado momento, a porta do palácio residencial abre-se e aparecem vinte escravas, dez negras e dez brancas, e a cunhada. Sahzaman vê sem ser visto. A rainha e o séqüito julgam que Sahzaman está com o irmão, na caçada. Despem-se e, para surpresa de Sahzaman, não são vinte escravas negras e brancas, mas dez escravos negros e dez escravas brancas. A rainha chama duas vezes pelo nome Massud. Um negro escravo salta de cima de uma árvore, onde está escondido. A orgia dura até meio-dia. Lavam-se e o séqüito volta a ser o de uma rainha acompanhada de vinte escravas, dez negras e dez brancas. O negro que ficara com a rainha, pula o muro e foge.

Sahzaman vendo a desgraça do irmão percebe que não é o mais infeliz no mundo. Há quem esteja em pior situação. E, assim, começa a melhorar!

Sahriyar retorna e vê a melhora do irmão. E vê que melhora a cada dia que passa. Quer saber a causa dessa transformação. E de tanto insistir, fica sabendo do ocorrido durante a ausência na caçada. Todavia, não acredita no irmão. Este, para convencê-lo, sugere-lhe fingirem partir para nova caçada, da qual os dois irmãos retornariam imediatamente sem ser vistos, e se alojariam clandestinos no palácio dos hóspedes, de tal forma que poderiam ver o jardim sem ser vistos. E não dá outra coisa. Tudo se repete sob os olhos de Sahriyar e de Sahzaman.

Desiludido, Sahriyar convida o irmão a viajarem pelo mundo: “Vamos abandonar nossos reinos e perambular em amor a Deus altíssimo. Vamos desaparecer daqui. Se por acaso encontrarmos alguém cuja desgraça seja pior do que a nossa, voltaremos; caso contrário, continuaremos vagando pelo mundo, sem necessidade alguma do poder.”

Ato continuo, põem-se a viajar. Certa manhã, apenas acordados, estando na orla do mar, ouvem um grito aterrador vindo do meio das ondas. Olham para as águas do mar que se separam e veem surgir um “ifrit” (criatura sobre-humana e maleva), é um gênio, carregando sobre a cabeça um baú de vidro trancado com quatro cadeados. Apavorados, os irmãos, sobem na árvore gigantesca, sob a qual haviam dormido e ficam escondidos. Pois é justamente debaixo dessa árvore que o “ifrit” vem sentar-se. Abre o baú, retira dele formosa mulher e deita a cabaça no colo dela, estica as pernas que chegam até as águas do mar, adormece e ronca.

A moça descobre os irmãos escondidos na copa da árvore. Deposita a cabeça do gigante ao solo e dirige-se aos dois, com gestos sedutores, convidando-os a descerem e copularem com ela. Depois de muita hesitação, tudo acontece como a moça manda e, por fim, ela toma deles os anéis, completando a coleção dela que agora de 98 anéis chega a 100. “Todos os donos desses anéis me possuíram, e de cada um eu tomei o anel. E como vocês também me possuíram, dêem-me seus anéis para que eu os junte a estes outros e complete cem anéis; assim, cem homens terão me descoberto bem no meio dos cornos desse ‘ifrit”, nojento e chifrudo, que me prendeu nesse baú, me trancou com quatro cadeados e me fez morar no meio desse mar agitado e de ondas revoltas, pretendendo que eu fosse, ao mesmo tempo, uma mulher liberta e vigiada. Mas ele não sabe que o destino não pode ser evitado nem nada pode impedi-lo, nem que, quando a mulher deseja alguma coisa, ninguém pode impedi-la.” A moça fê-los partir e desaparecer para sempre.

Na caminhada, Sahriyar confidencia ao irmão: “Ó meu irmão Sahzaman, veja só essa desgraça: por Deus, é muito pior do que a nossa. Esse aí é um gênio que seqüestrou a jovem na noite de seu noivado, e a trancafiou num baú de vidro com quatro cadeados, e a fez morar no meio do mar alegando que assim a preservaria do juízo e decreto divinos. Mas você viu que ela já tinha sido possuída por noventa e oito homens, e que eu e você completamos os cem. Vamos retornar, mano, para nossos reinos e cidades. Não voltaremos a tomar em casamento mulher alguma. Aliás, de minha parte, vou lhe mostrar o que farei.”

Primeiramente voltaram ao reino de Sahriyar, o qual mandou o vizir, pai de Sahrazad e de Dinarzad, matar-lhe a esposa infiel. Ele próprio, Sahriyar, matou as vinte “escravas” de companhia substituindo-as por vinte escravas de verdade. E tomou a insólita decisão de não se manter casado a não ser durante a noite de núpcias. Na manhã seguinte, mandaria o vizir matar-lhe a nova esposa. Estaria assim definitivamente protegido do destino! Fez que o irmão Sahzaman partisse locupletado de muitos bens e bem acompanhado por guardas.

Sahriyar ordena que o vizir lhe traga uma jovem da mais elevada linhagem. Casa-se e no dia seguinte manda que o vizir a mate. E assim a cada dia uma jovem é sacrificada.

Ora, as filhas do vizir, sábias, especialmente a mais velha Sahrazad, ficaram consternadas com o triste destino de tantas jovens. Sahrazad revela ao pai que quer casar-se com o rei Sahriyar: “Ou me converto em um motivo para a salvação das pessoas ou morro e me acabo, tornando-me igual a quem morre e acabou.”

O pai, desesperado e enraivecido, conta a Sahrazad a história, “O burro, o boi, o mercador e a esposa”, com o objetivo de fazê-la mudar de opinião. Marco essa história com o número zero. Ver-se-á que as histórias em “As mil e uma noites” são as histórias contadas por Sahrazad, marcadas Um, Dois, Três, etc. Com essa observação, aponto para a filiação de Sahrazad, cujo pai inicia o mar de histórias, nesse livro, contando ele mesmo uma história... Não é curioso e enigmático que o pai de Sahrazad e Dinarzad não tenha nome próprio? E, por outro lado, quem seria a mãe de Sahrazad e de Dinarzad?



HISTORIA 000, contada pelo pai de Sahrazad e de Dinarzad, vizir (ministro) do rei Sahriyar: “O BURRO, O BOI, O MERCADOR E SUA ESPOSA”. O mercador, nessa história, tem o dom de entender a fala dos bichos. Mas, deve manter segredo sob pena de morte. Ver-se-á, na história, que uma coisa é manter em segredo a capacidade de entender a fala dos bichos e outra coisa é manter em segredo aquilo que se fica sabendo a partir da fala dos bichos, quando um fala com o outro, no primeiro caso, o boi e o burro e, depois, no segundo caso, o cachorro e galo. Uma coisa é manter em segredo uma capacidade e outra coisa é manter em segredo aquilo que se faz ou se obtém com ela. É claro que, no momento em que se revela aquilo que se faz ou se obtém com a capacidade que se tem, revela-se, ipso facto, a capacidade mesma, embora isso fique implícito para muitos. Não existisse essa capacidade, então seria mentira ou invencionice aquilo que se revela. A escuta do psicanalista é a escuta daquilo que o psicanalisante não escuta ao falar e escuta daquilo que mesmo ao falar, o psicanalisante ainda não consegue dizer.

De fato, o mercador revela à mulher ter um segredo, espicaçando a curiosidade dela. O mercador escuta o burro aconselhar o boi a tornar-se refinado, isto é, não trabalhar espontaneamente e não comer a primeira comida que lhe for oferecida. O boi segue o conselho e acaba sendo espanca pelo lavrado. Este, por fim, dá-lhe comida como sempre. Mas, o bom não come e faz leve greve de fome. Por ordem do mercador que sabe das coisas entre o burro e o boi, faz o lavrador usar o burro no lugar do boi. Com essa parte da história, o pai quer instruir Sahrazad a não se meter a ajudar as infelizes moças do reino, pois que acabará tendo sorte igual ou pior do que elas.

Sahrazad persiste e o pai continua a história. Na desgraça, o burro inventa um saída para se livrar do triste destino em que caíra, causado pela sua generosa e birra esperteza. O mercador, conta o pai de Sahrazad, ouve o burro advertir o boi sobre o abate dele, pelo açougueiro, caso não volte a ser o boi de antes. O mercador ouve e ri da esperteza do burro. Mas, a esposa do mercador acha que ele está rindo dela. Comete a imprudência de dizer-lhe que tem um segredo e que não o pode revelar sob pena de morte. Perante as insistências da esposa que o importuna e sabendo que poderá morrer, o mercador prepara-se para morrer.

No meio de tantas aflições, o mercador ouve uma conversa entre o cachorro e o galo. O cachorro informa o galo sobre a situação miserável do mercador, dono deles. Mas, o galo, acostumado a lidar com muitas galinhas e não somente com uma esposa como o mercador, diz ao cão, sendo ouvido pelo mercador, que o dono deles é um tolo, pois que tendo uma só esposa não sabe lidar com ela. Deveria espancá-la até ela desistir de querer saber as coisas secretas do marido. E é isso mesmo que o mercador faz, espanca a mulher até ela desistir definitivamente não de conhecer os segredos do marido. Isso, evidentemente seria puerilidade se não fosse mito, pois, quem, como pesquisador psicanalítico, conhece a essência do desejo, sabe que esse é imbatível e incontornável.

O pai de Sahrazad ameaça-a dizendo-lhe que procederá como o mercador com a mulher, caso ela, Sahrazad, não volte atrás. Todavia, Sahrazad não se curva e diz-lhe: “Por Deus que não voltarei atrás. Essas histórias que você contou não me farão hesitar quanto à minha intenção. E, se eu quisesse, poderia contar muitas histórias semelhantes a essa. Mas, em resumo, tenho a dizer o seguinte: se você não me conduzir ao rei Sahriyar de livre e espontânea vontade, eu entrarei no palácio escondida das suas vistas e direi ao rei que você não permitiu que alguém como eu se casasse com ele, mostrando-se avaro com seu mestre”. (p. 55).

O pai apresenta-se ao rei e oferece-lhe a filha mais velha. “O rei ficou intrigado e disse: ‘E como tu permitirás, ó vizir, que tua filha se case comigo, sendo que eu – juro por deus, por quem ergue os céus! – ordenarei que tu a mates mal amanheça o dia, e se tu não me obedeceres, eu te matarei?’ O vizir respondeu: ‘Meu amo e sultão, foi isso mesmo que eu informei e expliquei à minha filha, mas ela não aceitou e quis estar com o senhor nesta mesma noite.’ O rei ficou contente e disse: ‘Desça, arrume-a e traga-a no início da noite.’”

Sahrazad recebe a informação trazida pelo pai. Chama a irmã Dinarzad e combina com ela que, antes de ela, Sahrazad, ficar com o rei, a mandará chamar. Dinarzad deitar-se-á debaixo do leito dos amantes e após o ato sexual, antes de eles dormirem, dirá: “‘Ó irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma historinha’. Então eu contarei a vocês histórias que serão o motivo de minha salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de matar suas mulheres.”

Esse é o paradigma dos procedimentos que iniciam o mar de histórias inventadas por Sahrazad, contadas ao Rei e à irmã Dinarzad. Dinarzard diferentemente de Ismênia, irmã de Antígona, participa efetivamente da aventura da irmã maior. E, assim, começa a primeira história.

Uma sequencia de significantes aparece nessa serialidade: O segredo do mercador que entende a lei dos animais, que não pode ser revelado sob pena de morte. O pai, que com arte conta a HISTÓRIA do mercador, no sentido de inibir e coibir a filha, ensina a essa a arte de contar histórias. Passando um conteúdo proibitivo por meio de uma HISTÓRIA, o pai passa à filha, Sahrazad, a arte ou capacidade de contar histórias. Em desobedecendo ao sentido dado pelo pai ele reverencia o pai contando histórias tão bem ou até melhor do que ele.

“As mil e uma noites”, mais do que mar, é um emaranhado de histórias. O gênero musical que poderia ser equiparado a essa obra literária seria a fuga enquanto gênero de composição musical.

Igualmente, o conto de Poe, aproveitado por Lacan para ilustrar a teoria do significante, enquanto significante que significa o sujeito para outro significante, é uma amostra do que se passa em todo esse emaranhado de histórias na HISTÓRIA de “As mil e uma noites”.



HISTÓRIA 001: O MERCADOR E O GÊNIO. Observe-se que, no LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, tudo começa com a narração da história de dois irmãos, Sahriyar e Sahzaman, e da história do vizir (ministro) de Sahriyar, pai de Sahrazad e Dinarzad. Narra-se que o vizir narra a Sahrazad a história do mercador capaz de entender a fala dos bichos. Narra-se que, no lugar do vizir, agora, surge Sahrazad que, noite após noite, para se escapar do assassinato inevitável, a ser ordenado pelo rei e a ser executado pelo pai dela, narra ao rei e à irmãzinha uma história bela e espantosa.

O pai tomara, como personagem principal, um mercador. Igualmente, Sahrazad toma, em sua primeira história, como personagem principal, um mercador. É como no jogo de revezamento em que um atleta passa o bastão a outro. O MESMO BASTAO percorrerá diversos giros ou ciclos, enquanto os atletas se revezam. A MESMA HISTÓRIA percorrerá giros ou ciclos, enquanto as histórias e as noites se revezam. Na pesquisa psicanalítica, o sujeito é determinado por uma HISTÓRIA, a história 000, inacessível e inabordável. A aproximação a essa HISTÓRIA é a produção de inúmeras histórias, uma para cada momento (noite) da vida. A morte é a interrupção dessa sequência de histórias: pode se dar enquanto o ser gente está ainda vivo... mas, dá-se inevitavelmente quando o ser gente fica abatido definitivamente pela mão da morte.

O que faz o papel da agulha e o que, qual linha, ficará como fio vermelho, unido uma história a outra? Ou essas questão serão automaticamente desmentidas?

Um comentário:

  1. Oi Caon!
    Penso que a agulha é a narrativa. Já o fio vermelho, penso que sejam os significantes que surgem nas estórias e fazem essa amarração de uma estória com a outra.
    Confesso que quando fiz a leitura dessa obra, ainda no primeiro volume fiquei completamente confusa. Já não sabia mais quem estava narrando, pois os personagens narrados por Sahrazad também contam estórias com outros personagens que, por sua vez, contam estórias. Uma coisa que me chamou a atenção é que as estórias sempre, ou quase sempre, funcionam como forma de justificar o merecimento de ganhar algo ou para justificar os atos praticados com finalidade de evitar uma punição ou a morte.

    Abraço.

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