sexta-feira, 9 de março de 2012

Outras maneiras possíveis de fazer memória: essa é uma

O dinheiro na vida e a vida no dinheiro



Por jlcaon@terra.com.br







Nas aventuras de guri, por diversas vezes eu estive envolvido com estratagemas e inventividades de adquirir dinheiro. Uma delas consistia em ir à loja a pedido de minhas tias e avó e receber uns níqueis que elas tiravam do troco que lhe lhes trazia.

Havia também o estratagema de ficar com moedas distraídas, que logo aprendi ser algo extremamente difamante. O ganho obtido em tais situações tornava-se grave perda e prejuízo em termos de honra e consideração.

Todavia, tomar dinheiro de pessoas distraídas, isto é, tolas, “pori grami”, isso era louvado e considerado virtude. Essa furberia muito valorizada, embora não confessada, a não ser em certas pequenos grupos, especialmente entre colonos e citadinos ítalo-brasileiros, que ainda se consideram imigrantes e não expatriados, avatar recente de que é nosso petróleo, continua sendo enigma para mim.

Passar para trás o outro, sendo esse outro esperto ou não, são triunfo e gozo bem mais superiores que o próprio ganho em dinheiro obtido por esse colono. É um tipo de machismo em que o desfrute de comer uma mulher é menos gozoso do que a vantagem que o infeliz tem contando para os confrades machistas. Uma época eu pensava que esse machismo era homessexualidade mal aceita. Não, homossexual não é tão cínico assim. Se todos nós, colonos e citadinos ítalo-brasileiros ou não, somos naturalmente antas em muitos aspectos, nesse aspecto de ganhar dinheiro com esperteza, aparecem antas bem mais antas que as antas em geral.

Ora, ser anta de anta é realmente uma ignomínia e humilhação metafísicas.

Igualmente, aquele que, sendo anta como todos nós somos em alguns aspectos, faz do outro anta, seja parente, próximo, colega ou até amigo, esse “furbo”, é ao mesmo tempo mal-falado, mas também secretamente muito admirado e valorizado. Surge aí o conflito entre a inveja e a admiração que move as almas não somente dos colonos e citadinos ítalo-brasileiros e descendentes, mas também a humanidade, perante esse portentoso deus do qual somos crentes e servidores a maior parte do tempo de nosso dia e de nossas vidas.

Crianças, velhos ou excluídos como incapazes de servir a esse deus são considerados fracassados e pobres coitados. Nem se diga dos mendigos e moradores de rua, considerados mais como vagabundos do que enigmas. Não sei que graça há em fazer opção por esses coitados, se nessa opção esses coitados continuam a gozar desse privilégio funesto de coitados excluídos...

Com nove anos de idade, aprendi a comprar dinheiro de duas maneiras diferentes: 1) trabalhando meio expediente numa fábrica de palhas; 2) servindo de coroinha nas missas mensais da capela de Nova Treviso, hoje Nova Roma do Sul.

Enquanto algumas crianças brincavam aparentemente felizes no período em que não iam para a escola, outras, eu era uma, trabalhávamos na roça para os pais ou como, no meu caso, trabalhávamos também na fábrica de palhas destinadas a cigarros tipo palheiro.

Não via o cheiro do dinheiro pago no fim do mês. Isso desentusiasmaria qualquer cristãozinho!

É curioso que nunca ninguém conseguiu meter a mão no dinheiro que eu adquiria como gorjeta ou como coroinha. Resultado: gastava o quanto antes de medo que me fosse tomado não no sentido de roubado, mas no sentido de que devia entregar esse dinheiro aos pais, no caso à mãe. Percebo que eu já praticava, sem votos de pobreza, aquilo que os monges e monjas, a quem não faltam os bens materiais, chamam de voto de pobreza. Pode-se ganhar dinheiro, mas não se pode ter a propriedade dele, nem a disponibilidade dele e muito menos o apego a ele. Dá para entender?

Essas filosofadas vãs não impediam que o dinheiro exercesse e exerça atração e poder sobre os monges e monjas e especialmente sobre os bispos, os cardeais e o próprio papa que não são monges! Por mais que fique silenciado, escondido ou abertamente difamado – por exemplo, “o dinheiro é o lixo do diabo!” – o dinheiro exerce fascínio, atração e devoção como certas partes de nossos corpos, as quais mantemos escondidas, íntimas e secretas, embora, nas falas, desde pequenos aprendemos a referi-las com palavras chulas, ditas palavrões. E delas só poderíamos falar candidamente como criancinhas ou com os termos científicos e preferivelmente em latim! Isto é, podemos falar em termos latinos, ou com o deboche da gozação, ou com a candura infantil ou com a severa cientificidade!

Uma das atividades que eu não podia deixar de fazer quando guri era cuidar das galinhas. Isto implicava recolhê-las de noite, fechar os galinheiros. De manhã cedo, entrar nos galinheiros e separar as galinhas poedeiras do dia, mantê-las presas e soltar as outras. Noutra ocasião, contarei como se faz isso que é meio parecido com a arte do proctologista e do escolhedor de palhas de milho destinadas aos cigarros tipo palheiro, no trabalho na fábrica de palhas. O cuidar das galinhas me permitiu descobrir por mim mesmo aquilo que os alunos de biologia não encontram nos livros: por quê aparecem ovos chocos e fedorentos dos quais não saíram pintainhos? Soube há pouco, perante o maravilhamento de Ivone e Joaquim (provectos sobrinhos setentões), da existência da expressão “ovos galados” e “ovos não-galados”, expressões que supõem o conhecimento que eu tinha sem expressá-lo: ovo de galinha sem a participação do galo, se chocado pela choca, via virar ovo choco e ovo de galinha com a participação do galo, se chocado pela chova, vai virar pintinho.

Nas escolas, tipo internato, a vida é meio parecida com a de monges. Foi assim durante minha adolescência e primeira juventude: a agente não tinha dinheiro próprio e disponível. O que se tinha era o dinheiro contado para o ônibus, para o remédio e assim por diante e sempre pingado. Não é muito diferente do que se passa com as famílias onde a criança e o adolescente não recebem mesada fixa. Era o comunismo econômico que se acredita ter existido nas comunidades de base dos primeiros cristãos. Nem por isso precisavam fazer voto de castidade ou de obediência! Comunismo econômica na família e nas comunidades dos primeiros cristãos se funda no princípio: “A cada um segundo suas NECESSIDADES e de cada um segundo suas CAPACIDADES”. O adulto, no caso o pai e a mãe, têm mais capacidades e por isso deles se exige muito mais. Os filhos, principalmente quando crianças e adolescentes, têm muitas NECESSIDADES que os adultos já não têm e mais ainda não têm a CAPACIDADE de comprar dinheiro como têm os adultos. O comunismo comunitário dos monges e das freiras é meio parecido: mas lá não tem filhos, nem adolescentes, nem eles arcam com imensa responsabilidade de transmitir a vida, embora gostam muito de meter a colher torta nessas questões especialmente quando se investem de cargos políticos religiosos, tipo bispo, cardeal, papa e outros metidos a monsenhores. Quero saber qual o político de Estados ou clérigo de Igrejas que é capaz de fazer um décimo do que faz um pai e uma mãe, por mais atrapalhados, pobres ou socialmente excluídos que sejam. No frigir dos ovos, é sempre o consumidor que paga a maior parte do IMPOSTO. No frigir dos ovos é o laicato que sempre paga o IMPOSTO do clero de Igrejas e do político de Estados. O laicato, dos Estados e das Igrejas, continua hipotecado e alienado como boi que não sabe o poder de sua força?

Todavia, na falta do dinheiro de verdade, me surgiam outros sistemas com os quais se podiam fazer trocas e negócios. Assim como os meninos usam bolinhas de gude tanto para o jogo como par os negócios, assim também no internato havia o sistema de objetos, aparentemente religiosos, chamados medalhinhas, santinhos, etc., Trocavam-se santinhos e faziam-se negócios usando santinhos! Isto é, trocavam-se santinhos por outras coisas que não fossem santinhos. Prestavam-se serviços em troca de santinhos, por exemplo, fazer o tema para um colega vagabundo ou incapaz, dava santinho! Eu tive um colega que vivia esperando a invenção de uma máquina capaz de transmitir as aprendizagens de um aluno para outro: por exemplo, ele ligaria os fios na minha cabeça e na dele, aquilo que eu aprendesse acordado, passava para a cabeça dele, enquanto ele dormia. E quando eu cansava inverteríamos a coisa. Mesmo não existindo ainda essa máquina (?), eu não aceitei a proposta: pois eu já entraria mal. Ele era muito pouco estudioso e muito dorminhoco e assim eu não poderia dormir tanto quanto ele.

O comércio é uma invenção genial da humanidade que existe muito antes do cristianismo e do capitalismo. O dinheiro que existe muito antes do cristianismo e do capitalismo é outra invenção genial da humanidade. Com o dinheiro compram-se mercadorias, serviços, etc., - até as almas podem ser compradas ou alugadas e não somente prostitutas! – e com dinheiro se pode também comprar dinheiro, como no caso da Caderneta de Poupança, Bolsa, jogos tipo loterias ou jogos particulares e privados tipo jogatina.

Os cristãos, vivemos como todo e qualquer ser humano não maluco ou marginalizado, voltados para o dinheiro, ocupados e preocupados com o dinheiro, não somente nas campanhas de fraternidade! Assim como vivemos voltados para o que significam as partes íntimas de nossos corpos, assim também vivemos voltados para as coisas mais secretas que o dinheiro movimenta e manipula. Somos realmente movidos a dinheiro, sexo, poder, prestígio e outros móveis. Todavia, por que é que não sossegamos?

Sábio o menino que, tendo perguntado à mãe porque as mulheres se pintam, recebendo a resposta, “para ficarem bonitas”, ainda pergunta: “E por que é que não ficam?”

Por que é que vivemos comprando dinheiro? Para ficarmos mais bem abastados? E por que é que não ficamos então nesse mundo capitalista consumista sem eira nem porteira?

Quando o dinheiro faz falta, então é ele se torna o pior dos tiranos. Mas, como entender a tirania do dinheiro quando ele não mais faz falta? O que é que falta então, que o capitalista consumista e consumido busca sem nunca encontra no dinheiro? Sabe ele que o dinheiro é um bom empregado, mas, péssimo patrão?

Estaria ele significando uma falta que dinheiro algum, sexo algum, poder algum, prestigio algum podem suprir? E por que não? Capitalista consumido é escravo voluntário e prestigiado, nada burro, mas transviado. Não tem tempo nem para se divertir. E quando economiza tempo, nada sabe fazer com ele senão matá-lo. São as lições que eu comecei a aprender nas grotas dos rincões do Antônio Prado Profondo. É curioso, mas também nasce gente lá. Amichevolemente, jlcaon

Um comentário:

  1. Caon, corajosa e instigante a tua carta epistolar. O tema dinheiro, ou simplesmente dinheiro das perdas e ganhos, rompe limites tradiconais e conhecidos para ganhar cosmologia comovente e ao mesmo tempo perturbadora. Não sei o por que, tua carta remeteu-me ao livro e ao filme "O Código Da Vinci", ao Opus Dei e ao Banco Ambrosiano. Fé e devoção exigem pagas / pagamentos? A religião se sustenta em emolumentos, como a vida? Um dinheiro de troca? Há os que sabem e os que não sabem ganhar / fazer dinheiro, ou, simplesmente, estabelecer as trocas que nos determinam mortais submissões. Justamente, perto do fim, as submissões parecem nunca ter sentido. Carlos Fernando

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